quarta-feira, junho 29, 2005

Era assim há 60 anos...




Recordando a Primeira Viagem

Dia 27 de Setembro de 1945. Às 5 horas da manhã (a 1.ª grande madrugada) saía eu da minha aldeia, quase tão pobre como hoje ainda, acompanhado do meu Pai em direcção ao comboio que me levaria pela 1.ª vez ao Seminário. Depois duma despedida, um tanto chorosa, da minha mãe e dos 8 irmãos, a cavalo na burra que foi ainda por muitos anos a grande companheira e a melhor amiga de todas as viagens de ida e volta, penetro na escuridão da noite, por caminhos tortuosos e cheios de pedras, que só o instinto do fiel animal podia trilhar com segurança. Atrás e a pé caminhava o Pai, aproveitando o tempo e o silêncio da noite para me repetir os muitos conselhos, que já ouvia há quase um ano, e me fazer os últimos avisos sobre os perigos da viagem e os cuidados a ter na guarda da mala e do saco de roupa. De vez em quando, ouvia-se ao longe o balir dos rebanhos, confundido na noite com o tilintar dos chocalhos.
Acabei por adormecer, embalado no toc-toc da amiga burrinha. Às 7 estávamos na Estação do Variz. De noite ainda, o Pai acende uma fogueira e eu adormeço novamente encostado ao saco de roupa. Às 8 horas chegam os primeiros e futuros amigos e companheiros de anos de Seminário. Era o Aquiles, que Deus já levou, depois duma vida árdua de estudo e de sofrimento a anteceder a morte. Com ele vinha o Caveiro, já veterano em Vinhais, e que seria o nosso guia e guarda durante a viagem. Pouco depois aparece o Sousa, que moureja em Africa, acompanhado do Pimentel que também já partiu para a eternidade. O Pinto, que depois se fez brasileiro e por fim acampou na Holanda, chegou logo a seguir, vindo com ele o Artur Morais, que seguiu a carreira do Ensino. Meia hora depois, ouve-se o 1.º apito do comboio, esbaforido e cansado já, apesar de só ter andado ainda desde Duas Igrejas. Alvoroço e contentamento geral, sobretudo para os que íamos pela 1.ª vez. Um pouco à pressa e precipitadamente, corremos para a Gare, receosos de que não parasse e partisse sem nós.
Eram os primeiros efeitos de tantas recomendações!!! Já com os bilhetes na mão e as bagagens prontas, esperámos ansiosamente a chegada daquela máquina, tão negra e tão feia, mas tão cheia de encanto e mistério para nós. Aparece e, com o som estridente do seu apito, um frémito de novidade perpassa pelo nosso íntimo, pondo-nos em alvoroço e inquietação. Já dentro da carruagem, com as bagagens arrumadas, e sentados nos nossos lugares para experimentarmos o macio daqueles bancos de madeira enegrecida, despedimo-nos dos nossos Pais, com uma lágrima que se não conseguia evitar, apesar da alegria da viagem e da novidade do comboio. Começámos assim a longa caminhada da vida de Seminário e depois dele, para muitos a primeira vez, e para todos incerta e desconhecida.
Nas estações seguintes, novos rapazes vêm juntar-se ao grupo, fáceis de reconhecer não só pelo estilo tão comum das bagagens e do vestir, como sobretudo pela tradicional boina espanhola que nos acompanharia pelo menos até à entrada em Filosofia. Era o Domingos Bento, que morreu de desastre. O Toninho Morais, que enveredou pela investigação judiciária. O Artur Parreira, que felizmente chegou ao fim, como símbolo de perseverança e generosidade. O Manuel Afonso, o número um dos salpicões e dos presuntos, e muitos outros, cuja passagem pelo Seminário foi tão fugaz, que a memória não consegue recordar-lhes os nomes.
No Pocinho foi a 1.ª mudança de linha e de comboio, e logo a seguir a surpresa hilariante dos primeiros túneis e respectiva iluminação eléctrica.
No Tua, novamente carregámos toda a troixa para mudança de direcção. Aqui começou a minha primeira grande prova, fazendo-me reviver e praticar todos os avisos e conselhos do meu Pai.
Ainda em plenas curvas da encosta íngreme da linha do Tua, dois cavalheiros, bem postos e bem falantes, sentam-se a meu lado. Com naturalidade metem conversa comigo, querendo saber o meu nome, a terra de origem, e destino, etc. O meu habitual acanhamento e o receio natural daquela idade levaram-me a desconfiar de tão simpáticos interlocutores, e então os meus cuidados e atenção iam todos para a mala, o saco de roupa e a taleigo da merenda.
Aguentei a conversa por algum tempo, com desconfiança e preocupação, mas sem dar parte fraca, até conseguir que o Aquiles viesse para junto de mim e assim me aliviasse do susto que ensombrou parte daquela viagem tão memorável.
Depois adormeci, e só acordei em Bragança, com a algazarra dos companheiros, ao verem a cidade iluminada. Ali esperava-nos um sacerdote, creio que o Sr. P.e Júlio Pinto, que havia de ser o nosso Prefeito em Vinhais e o forjador das nossas armas nos primeiros anos de Seminário.
Ao vê-lo, de batina preta, afável e sorridente, aquela figura aprumada empolgou-me, e fez-me desejar ainda mais um ideal que já então ambicionava. Todo pressuroso e prestável ajuda-nos a transportar as bagagens para a caminhoneta do Sr. Jerónimo, velha e tão incómoda como o comboio que nos trouxera até ali.
Partimos em direcção a Vinhais. À porta do Seminário outros sacerdotes nos esperavam, com o Sr. Reitor à frente — o Sr. Cónego José Teixeira.
Já não me recordo como desci e subi as escadas com tanto peso e com tanto sono. Apenas me lembro que um Sr. Padre, ainda novo, mas Velho de nome, me ajudou a fazer a cama e me meteu nela, dizendo-me à despedida que era quase meu conterrâneo e que conhecia o meu Pai e toda a família.
Que alegria e emoção eu senti ao ouvir pela 1.ª vez, longe da minha casa, que alguém conhecia os meus Pais e irmãos! Adormeci, cansado pela viagem e embalado pela emoção de tantos acontecimentos deste 1.º dia da minha vida de seminarista.
O que sonhei já não me recordo. No dia seguinte, já com o sol a entrar a jorros pelas janelas da camarata de Santa Teresinha, acordei ao toque do relógio que então ficava no topo do corredor, ao lado do gabinete do Sr. Reitor, parecendo-me aquela melodia tão cadenciada um prenúncio do Éden terrestre que eu ambicionava e julgava encontrar na vida e na casa do Seminário.

Lisboa, 25 anos após.”

ANTÓNIO JOAQUIM LOURENÇO

Transcrito de: Suplemento do n.º 1341 do Mensageiro de Bragança, de 27 de Novembro de 1970, pág. 47, Comemoração do CinquentenárioBodas de Ouro da Fundação do Seminário de S. José de Vinhais em 20 de Setembro de 1970

2 comentários:

É FARTAR, VILANAGEM disse...

Tenho uma ideia que o Lourenço que escreveu esta prosa é um conhecido meu que esteve ligado à música. Gostaria de confirmação.
J.Rego

ChFer disse...

Caro J. Rego:
Como o Lourenço já não é da minha lembrança, não sei prestar a informação que pede. Todavia, esperemos que alguém possa vir informar-nos dessa faceta do Lourenço, após o que poderia ser satisfeita a sua pretensão.
Deixa-se o apelo: se alguém souber traçar o perfil do António Joaquim Lourenço, diga alguma coisa! O J. Rego está à espera!
Um abraço para o J. Rego!