domingo, setembro 14, 2008

DESENCANTO



Quando descia aquela escadaria,
Palpitava em mim uma ânsia incontida,
Um frenesim de chegar,
De transpor portas
E rever pedras e espaços
Que, um dia … também foram meus.

Mas descia devagar
Para não melindrar o encantamento
Da chegada,
A emoção do abraço
Que, mentalmente,
Iria dar-lhes,
Olhando-os demoradamente,
E sentindo uma lágrima
A querer aflorar.

E transpunha os umbrais
Pedindo licença a personagens invisíveis,
Recordações vivas de um passado
Que foi meu e não volta…

- Entra… que esta casa é tua!
Parecia-me ouvir…

E entrava,
E caminhava por aqui e por ali,
E percorria todos os recantos
Que melhor me faziam recordar
Os tempos de menino.

Estava tudo igual,
Sempre igual à imagem longínqua
Que na mente me ficou.

Mas agora não.
A realidade que era… desmoronou-se
E onde havia recreios murados
Há serventias públicas
E onde a horta verdejava
E as videiras frutificavam…
Passa uma rua que divide a Cerca.

A Cerca deixou de ser,
O Seminário deixou de ser…
E até eu deixei de ser
O romeiro sonhador
Que, ano após ano,
Ansiosamente esperava
Por aquele dia de sonho
Em que, de novo,
Haveria de descer a enorme escadaria.

Já não desço devagar,
Nem entro à espera das emoções
Que antes me invadiam.

Tudo aquilo mudou de traço
E só me alivia do embaraço
que sinto cá dentro,
O encontro de muitos meninos do meu tempo
Esperando de mim e eu deles
Um fraterno e longo abraço.



Virgílio do Vale

13 - Setembro -2008


O nosso Virgílio do Vale oferece-nos esta pérola, como só ele sabe! Todos sentimos essa caracterização de um espaço e de um tempo idos, traços que estão a resvalar para a zona do indefinido ou mesmo cinzento. Obrigado ao Virgílio por esta sua ímpar cinzelada nas nossas rememorações!