terça-feira, agosto 30, 2005

Um poema para o Encontro de Ex-Alunos: Junho 1998

A um claustro inesquecível me confesso!

Para quem estava habituado a uma casa sem cal,
Sem jardim e sem estilo,

O monumental seminário,
Antecedido de majestosa escadaria,
Misto de escola e relicário,
Tombou, naquela tarde de Outubro, de luz frouxa,
Com todo o seu peso e imponência,
Sobre o dorso, já esmagado pelo saco da trouxa,
De um recém-candidato ao indefinido sacerdócio!
Aí vem ele, cheio de espanto, quase foragido da alegria,
Mais curioso que os curiosos da experienciada e veterana grei,
Que, de súbito, se junta, aos alaridos, sem contenção e sem lei,
Recebendo o caloiro, anónimo, qual vaso de inocência.


Primeira semana
, e aquele velho claustro,
Essa tão solene e indesmentível testemunha,

Olhava para o caloiro com olhos descomunais,
Oferecia um muro, um abrigo,
Uma esquina, defensora no perigo,
Onde o debutante pudesse evitar "ser montado",
Porque, para os veteranos, que se diziam "grandes" e leais,
O "montar" não era mau, nem tão pouco venial pecado!
E o caloiro, receoso e cabisbaixo, rezava baixinho:
- Abençoados muros, de pedra tão carinhosa,
Que me protegeis, com paternidade,
Afastai de mim os veteranos, intemeratos,
Que eu não creio nas suas promessas,
Só sei que não cheiram a rosa,
Tal é a sua insistência em incutir, nos novatos,
Medo, gambozinos, ansiedade,
E tantas, tantas coisas como essas.


- Passadas as primeiras praxes e recepções, indizíveis,
Caloiros calados, em união e posturas verosímeis,

Formavam filas, frente ao cesto do pão e queijo americano,
Alinhados pela colunata e advertência do circunspecto claustro:
- Se quiseres matar a sede, bebe desta rica água,
Em torneira de polegada e meia,
Que não corre a fio, mas cheia,
E sacia a tua estranha e subtil mágoa!
- E os caloiros bebiam, bebiam, em revoada,
Usando a capa negra como guardanapo civilizado,
Limpando a gordura do queijo,
Ainda preso na língua empapada,
E as migalhas do pão branco,
Qual beijo duma deusa incomentável,
Naquele recinto silencioso e sagrado,
Acolhedor, acrítico e afável,
Tão possante e tão franco!


Já familiarizado
com o quadrático espaço,
De pedra em sepulcral pedra medindo as passadas,

O caloiro aprendeu a jogar às escondidas:
Passava o prefeito, sisudo e apressado,
Mas o nosso melro aproveitava as colunas, gigantescas,
Recuando, estrategicamente, em pé-ante-pé lento,
Retrógrado e proporcional às andadas
Daquele vigilante da ética e normas do regulamento!
No final das inumeráveis façanhas,
Prudentes, mas sem manhas,
O claustro e o caloiro entendiam-se:
- Ó seu bicho aculturado,
Já aprendeste as minhas lições:
Não és só tu a jogar ao escondidinho, pela calada e sem espavento!
Contam-se finórios às dezenas, por semana,
Mas cuidado, que um dia chegam os sermões,
E o prefeito nunca, nunca se engana:
- Para a próxima, cuidadinho, seriedade e bom comportamento!


E
passados quarenta anos, o caloiro confessa-se ao claustro inesquecível:
- Ainda criança sonhei no teu berço,

Devaneei com fantasmas e ilusão!

Hoje, quando a bruma é espessa e invencível,

Escuto o eco deste nostálgico coração,
Que desfia confidências como Avé-Marias de um terço,

E te segreda com tanta confiança:
- Lembrarei o claustro da amizade,

Ainda que de tecto velho e pardacento;

Considero-te um mar de bonança,

E, como tu, meu primeiro mecenas,
Quero que todos os caloiros, às centenas,

Sejam felizes e livres como o vento!

Publicado em Alves, F. Cordeiro (2002). Entre Vertigens e Amores. Ed. Câmara Municipal de Vimioso

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